quinta-feira, 1 de janeiro de 2015


Cardeal Paolis critica com veemência

comunhão aos «divorciados recasados»





A PROPOSIÇÃO  N.º 52
DO SÍNODO EXTRAORDINÁRIO SOBRE A FAMÍLIA

                                                                      por Velasio De Paolis (Cardeal)

A questão do acesso aos sacramentos, especialmente à Eucaristia, por divorciados recasados foi objecto de reflexão no Sínodo Extraordinário dos Bispos de Outubro passado. Sobre este assunto refere-se a proposição n.º 52 da Relatio final, que diz:

«Reflectiu-se sobre a possibilidade de que os divorciados e recasados acedam aos sacramentos da Penitência e da Eucaristia. Diversos Padres sinodais insistiram a favor da disciplina actualmente em vigor, em virtude da relação constitutiva entre a participação na Eucaristia e a comunhão com a Igreja e o seu ensinamento sobre o matrimónio indissolúvel. Outros manifestaram-se a favor de um acolhimento não generalizado na mesa eucarística, nalgumas situações particulares e em condições muito específicas, sobretudo quando se trata de casos irreversíveis e ligados a obrigações morais em relação aos filhos, que viriam a padecer sofrimentos injustos. O eventual acesso aos sacramentos deveria ser precedido por um caminho penitencial, sob a responsabilidade do bispo diocesano. Esta questão ainda deve ser aprofundada, tendo perfeitamente presente a distinção entre situação objectiva de pecado e circunstâncias atenuantes, uma vez que «a imputabilidade e a responsabilidade de um acto podem ser diminuídas, e até anuladas» por diversos «factores psíquicos ou sociais» (Catecismo da Igreja Católica, 1735).»

1. O sentido da proposição sinodal

O texto não tem recolhido um número suficiente de adesões, ou seja, o voto de dois terços, e é por isso que não foi aprovado pelo Sínodo; portanto, não deve ser considerado um texto sinodal. Impõe-se porém dizer que é difícil avaliar a importância do voto. O texto é composto por várias partes não homogéneas, algumas opondo-se, e até mesmo com motivos inadequados, ou não totalmente apropriados, ou pelo menos incompletos, na articulação com as fontes doutrinais.

Na verdade, a proposta começa com uma questão digna de crónica: reflectiu-se sobre o tema. Em seguida, é referida a existência de uma corrente de padres que apoiam a actual disciplina (da Igreja) e outra que é favorável à mudança. O texto prossegue com a explicação dos pontos que devem mudar no quadro actual, assinalando também qual seria a responsabilidade que deveria competir ao Bispo. Conclui com uma advertência e um convite a um estudo mais aprofundado, sugerindo alguns elementos para fazê-lo. Portanto, não se sabe bem a que se refere um eventual voto contrário ou de aprovação do texto.

2. Limites da proposição

A proposta (ou «proposição»?) é apresentada com uma formulação limitada. Refere-se a uma categoria limitada de pessoas que vivem em situação de união irregular: os divorciados recasados. Está em causa uma categoria que merece, de acordo com a proposta, uma atenção particular e excepcional, motivada por circunstâncias especiais dignas da consideração que esta categoria possa ter, como o texto realmente explica de seguida.

Não é difícil encontrar nestas palavras alguns significativos elementos da proposta do cardeal Kasper. Porém já tivemos oportunidade de estudar esta proposta e de verificar que não é sustentada por algum argumento válido. Além de que a proposta era já conhecida pela autoridade competente, que a tinha estudado e rejeitado, não encontrando nela os elementos que poderiam subtrair uma avaliação segundo os princípios doutrinais dos documentos da Igreja. Portanto, a hipótese avançada na proposta sinodal já tinha sido estudada e avaliada de forma explícita e já se tinha chegado à conclusão de que não implicava princípios excepcionais, mas antes se enquadrava na categoria de princípios gerais, uma vez que, do ponto de vista da gravidade moral em ordem ao acesso à Eucaristia, a hipótese avançada na proposta constitui em todos os casos uma violação grave da moral conjugal e da disciplina da Igreja, que não pode permitir o acesso à Eucaristia. Por esta razão, os documentos da Igreja nunca fazem uma distinção entre as diferentes categorias de pessoas que vivem em uniões irregulares: as várias tipologias de pessoas que vivem irregularmente não diferem no que diz respeito à vida conjugal e ao acesso à Eucaristia.

Além disso, as condições em virtudes das quais se pretenderia uma consideração especial para os divorciados recasados podem verificar-se em todos aqueles que se encontram em situação irregular. E, em alguns casos, a situação pode até agravar-se: poderia parecer um prémio e um convite a estabelecer novos laços.

Podemos ainda fazer uma análise mais aprofundada. A proposta, ao restringir a hipótese a uma categoria específica, reconhece o valor doutrinal e normativo dos documentos da Igreja que regulam a matéria. E, visto que a proposta convida a um estudo, evidencia-se uma certa perplexidade com a própria proposta. Em que pode consistir este aprofundamento? Não sobre o valor doutrinal e normativo dos documentos, mas sobre a possível excepção contida na proposta. E de onde pode surgir a dúvida se não do facto que a proposta contém em si mesma uma excepção para as duas condições essenciais no acesso à eucaristia, uma vez que existe uma grave violação da lei moral natural e uma situação pessoal inadequada (não idónea?) para o aceder Eucaristia?

Com efeito, mesmo nesta categoria dos divorciados recasados estão presentes as duas condições que impedem o acesso à eucaristia, levando (condicionando?) as autoridades da Igreja a não poderem agir de outra forma, dado que a autoridade eclesiástica não pode dispor do direito natural e divino: respeitar a lei natural do matrimónio e a necessidade da graça santificante.

As situações descritas poderiam não permitir a separação das duas pessoas que vivem juntas em uma união irregular, mas não requerem necessariamente a vida em comum «more uxório» e a situação de permanente pecado.

3. Disciplina, doutrina ou magistério?

Observa-se que a elaboração do texto da proposta gera mal-entendidos. Fala-se de «disciplina actual» e de uma possível mudança da mesma, mas isto suscita algumas dúvidas, que exigem um aprofundamento. Na verdade, a legislação vigente não é apenas uma «disciplina actual», como se estivesse em causa uma norma puramente eclesiástica e não normas divinas, sancionadas pelo Magistério, com motivações doutrinais e magisteriais que põe em causa os próprios fundamentos da vida cristã, a moral conjugal, no respeito da eucaristia e da validade do sacramento da penitência. Estamos diante de uma disciplina fundada no direito divino. Não se sublinha o suficiente que os documentos da Igreja nesta matéria não impõe obrigações por parte da autoridade, mas antes afirmam que a autoridade eclesiástica não pode agir de outra forma, porque esta «disciplina» não pode ser alterada nos seus elementos essenciais. A Igreja não pode agir de outra forma. Não é possível alterar nem a lei natural, nem o que diz respeito à natureza da eucaristia, porque está em causa a vontade divina.

A proposta, na medida que prevê a possibilidade de admitir divorciados recasados à comunhão eucarística é, de facto, uma mudança doutrinal. E isso é contrário ao facto de que se afirma de não querer mudar a doutrina. Por outro lado, a doutrina, pela sua própria natureza, não pode ser modificada se é o objecto do Magistério autêntico da Igreja. Antes de se falar e lidar com uma eventual revisão da disciplina vigente, é necessário reflectir sobre a natureza desta disciplina. Ao lidar com este assunto dever-se-ia, em primeiro lugar, reflectir sobre esta doutrina e o seu grau de firmeza; é preciso estudar bem aquilo que pode ser modificado e o que não pode ser modificado. A dúvida foi insinuada na mesma proposta quando pede um aprofundamento, que deve ser doutrinal e prévio a qualquer decisão.

Podemos também perguntar se é da competência de um Sínodo de Bispos tratar de um assunto como este: o valor da doutrina e da disciplina vigente na Igreja, que se foi formando ao longo dos séculos e sancionado com intervenções do Magistério supremo da Igreja. Além disso, quem é competente (é capaz/tem competência?) de mudar o Magistério de outros papas? Este seria um precedente perigoso. Por outro lado, a novidade que se introduziria caso o texto da proposta fosse aprovado seria (constituiria) uma gravidade sem precedentes:

a) a possibilidade de admitir à comunhão eucarística, com a aprovação explícita da Igreja, uma pessoa em estado de pecado mortal, com (levanta) o perigo de sacrilégio e de profanação da eucaristia;

b) ao fazer assim, questiona-se o princípio geral da necessidade de o estado de graça santificante para receber a Sagrada Comunhão, especialmente numa época em que se introduziu, ou está sendo introduzida, na Igreja uma prática geral de aceder à Eucaristia sem confissão sacramental, mesmo quando consciente de se encontrar em pecado grave, com todas as consequências nefastas que esta prática acarreta;

c) a admissão à comunhão eucarística dos fiéis que vivem «more uxorio» (como marido e mulher) significaria pôr em causa a própria moral sexual, particularmente fundada no Sexto Mandamento;

d) além disso, desta forma dar-se-ia relevo (relevância?) à convivência ou a outros vínculos, enfraquecendo, de facto, o princípio da indissolubilidade do matrimónio.

4. Razões para conservar a disciplina vigente

A esse respeito, a proposta estabelece o seguinte: «Diversos Padres sinodais insistiram a favor da disciplina actualmente em vigor, em virtude da relação constitutiva entre a participação na Eucaristia e a comunhão com a Igreja e o seu ensinamento sobre o matrimónio indissolúvel

O texto não é muito claro e, em qualquer caso, é insuficiente porque incide sobre a problemática em causa. Em causa não estão apenas razões disciplinares para decidir de acordo com a maioria, mas antes uma doutrina e um Magistério (neste caso talvez seja «ensino») disponível, o que certamente vai além das competências de um Sínodo Extraordinário dos Bispos. Na verdade, neste problema estão implicadas questões doutrinais de extrema importância, às quais já nos referimos. Deve-se («é preciso»?) especificar que a razão para a exclusão da Eucaristia é, simplesmente, a condição em que se encontra um divorciado que vive maritalmente com outra pessoa: um estado de pecado grave objectivo. O facto de que esta condição seja causada pelo divórcio ou por um eventual novo vínculo civil não tem relevância (relevo?) sobre a condição moral que excluí a eucaristia: encontrar-se num estado permanente de violação da lei moral da Igreja.

5. Aprofundamentos

A proposta sustenta ainda: «Esta questão ainda deve ser aprofundada, tendo perfeitamente presente a distinção entre situação objectiva de pecado e circunstâncias atenuantes, uma vez que «a imputabilidade e a responsabilidade de um acto podem ser diminuídas, e até anuladas» por diversos «factores psíquicos ou sociais» (Catecismo da Igreja Católica, 1735).»

O texto afirma a necessidade de um aprofundamento somente de um ponto de vista, muito fraco. Na verdade, cita-se o Catecismo da Igreja Católica, com o qual não é possível discordar. O problema reside no facto de saber quanto incide este parágrafo do Catecismo da Igreja Católica na problemática aqui tratada. A primeira fonte de moralidade é aquela objectiva. E é da moralidade objectiva que aqui se trata.





segunda-feira, 29 de dezembro de 2014