sexta-feira, 4 de julho de 2014

Rei por alma de quem?


Reproduzimos um interessante comentário de um monárquico  – Filipe d’Avillez – sobre a coroação do último dos Filipes, que espero ser realmente o último da série de má memória (como todos os não Filipes daquelas bandas).

Entre as observações pertinentes que Filipe d’Avillez tece, destaco o facto de, na sua «tomada de posse», o último dos Filipes ter rejeitado referências religiosas, isto é, os símbolos da invocação de Deus para ser rei. Então aqui coloca-se a questão da legitimidade do soberano.

A questão é bem simples. Se não é rei eleito nem invoca a vontade de Deus para sê-lo, onde terá ido buscar a sua legitimidade? Será rei por alma de quem?

De destacar igualmente o facto de Filipe d’Avillez, no seu artigo, não ter esquecido a ocupação de território português pelo Estado espanhol. Houve para aí um entrevistado na televisão, monárquico, a quem foi perguntado se o Filipe seria «amigo de Portugal». E o entrevistado respondeu que sim. Pois agora é que vamos ver se nos devolve o que é nosso! O papá também era «amigo». Da onça.

                                                                        Heduíno Gomes


Para mais considerações, ver também:
http://maislusitania.blogspot.pt/2014/06/espanha-viva-la-tricolor.html



Uma conversa entre Filipes

Filipe d’Avillez

Tu és Rei, ou estás prestes a sê-lo, e eu não sou. Logo aí há uma grande diferença entre nós… mas une-nos o nome próprio, pelo que me permitirás falar-te sem cerimónias.

Desde que tenho consciência política que sou monárquico, mais ou menos activo, nunca o escondi. Defendo a monarquia espanhola, gosto dela até… do lado de lá da fronteira, entenda-se, e arrisco dizer que se vivesse nos anos 30 teria contemplado seriamente combater por ela, talvez juntamente com os carlistas, mas isso é outra história.

Amanhã vais ser proclamado Rei de Espanha. Filipe VI. Mas vejo que tomaste a decisão de recusar a celebração de uma missa no contexto dos festejos e que decidiste, também, que o ceptro e a coroa que te serão entregues não se farão acompanhar de um crucifixo durante a proclamação.

Meu caro, como eu ficaria mais descansado se compreendesses as 1001 razões pelas quais isto é um erro tão grande! Começo por recordar-te um episódio histórico. Jesus Cristo, lembras-te dele? Tenho para mim que Ele devia ser o modelo para qualquer pessoa e sobretudo para qualquer rei. Também o quiseram coroar, lembras-te? Queriam fazê-lo rei de um povo, como fazem agora contigo. Mas Ele preferiu a cruz. Lembras-te? Não te incomoda nada que estejas prestes a fazer precisamente o contrário de Cristo nosso salvador?

Apetecia-me perguntar se vais mandar retirar a cruz do cimo da coroa, mas em vez disso vou partilhar contigo aquilo que me explicaram sobre o significado dessa cruz. Não é só uma referência cristã, é a lembrança de que qualquer rei deve estar disposto a ser crucificado pelo seu povo, como Cristo. Se rejeitas esta cruz, que custa tão pouco, aceitarás a outra se te for imposta? Podes responder que não e ser um bom rei? Não me parece.

Até de um ponto de vista pragmático o que fazes é uma parvoíce. Estás a tentar agradar a quem? Os republicanos e a esquerda já te odeiam. Não é por isso que vão passar a gostar de ti… apenas estás a facilitar-lhes o trabalho… Mas arriscas hostilizar os católicos, isso sim. Para quê o tiro no pé?

Terá a ver com outras religiões? Pois digo-te que se eu vivesse na Tailândia ou na Arábia Saudita preferia saber que o Rei se identifica com a religião maioritária do país e se sente responsabilizado por essa crença do que pensar que ele a descartava por razões políticas e sociais.

A monarquia é sempre melhor que a república, sobre isso não tenho dúvidas. Uma das razões, ao contrário do que dizem os críticos, é precisamente o facto de o Rei não ser eleito. Na prática, isso significa que ele não deve o seu posto a nenhuma clique política nem a nenhuma loja maçónica. Mas tem de sentir que a deve a alguém, tem de sentir que tem alguém acima dele.

A cruz que acabas de rejeitar é precisamente essa recordação. É algo que te obriga a ter noção que foste colocado acima do povo para servir o povo mas que terás de responder perante Deus pela forma como te comportas nessa posição. A missa que acabas de rejeitar é precisamente essa recordação, seria o único momento do dia em que mostravas claramente que não te consideras acima de qualquer um dos teus súbditos. Hoje, como há 2000 anos, Cristo é o grande nivelador social da humanidade. Morreu por todos, ama todos e julgará todos. Sentes-te acima desse julgamento? É essa a mensagem que transmites.

Filipe, meu caro homónimo, cometeste um erro grave. Fizeste sem que ninguém te pedisse aquilo que incontáveis mártires, incluindo tantos no teu próprio país, no século passado, foram intimados a fazer mas recusaram, ao custo da própria vida.

Acorda Filipe. Andas a dormir? É que por cá temos um ditado: «Rei que adormece no trono, acorda no exílio».

Com votos de que possa estar redondamente enganado a respeito de ti, despeço-me com amizade!

Filipe


P.S. A minha irmã ainda está um bocado chateada por não te teres casado com ela… Ou pelo menos estava, já que o meu cunhado nunca renunciou um crucifixo…

P.P.S. Quando quiseres devolver Olivença…





quinta-feira, 3 de julho de 2014


O que sobrará de Portugal?


M. Fátima Bonifácio,  Público 2014-06-23

Um simples relance pelas últimas votações do Tribunal Constitucional mostra, como já tem sido sublinhado, que as divisões de opinião entre os magistrados que se sentam nesse augusto órgão de soberania não obedecem a puras divisões partidárias. Isto sugere uma saudável independência dos eleitos em relação aos partidos que lhes concederam os sufrágios necessários para que lá chegassem, em particular no que se refere aos magistrados indicados pela direita. Verifica-se, com efeito, uma indisfarçável consonância entre os pronunciamentos do tribunal e a opinião geral da esquerda, respaldada, neste particular, pela opinião do homem comum, compreensivelmente empenhado em defender o seu rendimento, venha o dinheiro lá de onde vier.

Esta indiferença pela existência ou não existência de dinheiro, questão que se reputa subalterna perante a preeminência indiscutível dos «direitos adquiridos» – ou simplesmente «direitos» –, indiferença que deixa perplexo o cidadão minimamente permeável à realidade, ocupa um lugar cada vez mais saliente no discurso da esquerda, incluindo a do arco da governação, e conduziria, levada às suas últimas consequências lógicas, à recusa de pagar a dívida, que tantos lunáticos e até alguma boa gente reclamam. Existe, pois, em Portugal um amplo e fundo consenso quanto à prevalência dos nossos direitos sobre os nossos deveres e os nossos meios, um pequeno problema que no entender de alguns se resolverá facilmente fazendo voz grossa na Europa. Nem a deplorável experiência do sr. Hollande levou os socialistas portugueses a compreender que as relações entre Estados se regem pela força dos interesses e não por solidariedades afectivas ou sequer ideológicas. A parte mais substancial do «programa» de António Costa para reerguer o país depende inteiramente da benevolência europeia, o que só pode inspirar a mais funda preocupação. O Tribunal Constitucional, ao chumbar reiteradamente (ainda que com uma ou outra incoerência) medidas aprovadas pelo Governo e julgadas contrárias à lei fundamental, beneficia pois de um larga audiência no país, na exacta medida em que o Governo incorre na fúria da esquerda e até em boa parte da opinião partidariamente desalinhada. Não será demasiado grosseiro dizer-se que os portugueses, de um modo geral, se revêem no Tribunal Constitucional. Mas não maioritariamente por escrúpulo jurídico, antes pelo prosaico e palpável motivo de que o tribunal constitui uma peça integrante do regime, que até por mera intuição toda a gente percebe que protege as dimensões mais conservadoras da nossa Constituição. O tribunal, ao zelar – e bem pelo cumprimento da lei fundamental, zela, do mesmo passo, pela conservação de toda a «tralha» socialista que nela se contém e que, como escreveu Henrique Raposo, impede a direita de governar, como tem demonstrado a experiência em curso.

Não obstante, mau grado todos os inconvenientes resultantes dos sucessivos chumbos do TC, a verdade é que o tribunal não se pode eximir a desempenhar as funções para que foi criado, e ao Governo não resta outra solução que não seja, mesmo com muita azia, cumprir pronta e rigorosamente os acórdãos que quase sempre mais não fazem do que condenar medidas que em muitos casos se sabia antecipadamente serem inconstitucionais. A lei é para respeitar, por dura ou incómoda que seja. Senão, quem amanhã vai punir o assaltante da minha casa? De nada servindo protestar contra o Constitucional, parece que apenas resta a solução de reformular as suas competências – no âmbito de uma revisão constitucional que produza um texto em que a generalidade dos portugueses se possa finalmente rever e com que todas as forças políticas possam governar. Seria óptimo, mas não é possível. O PS está e estará proibido, pelas suas várias facções esquerdistas, de se entender com o centro-direita para beliscar uma Constituição que santifica o socialismo como o destino superior de Portugal. O PS quer a todo o custo preservar o chamado «modelo social europeu» introduzido a partir de 1976, quando, passados mais de 30 anos, o mundo está irreconhecível, esse mesmo modelo sofre em diversos países reformas que o vão desfigurando, e as populações da maior parte do planeta estão já engalfinhadas numa competição global sem tréguas, incompatível com as disposições que regulavam um mundo relativamente pacato e previsível. Enquanto o PS se mantiver amarrado ao seu pólo radical, bloqueará toda a reforma constitucional que possa abrir caminho a uma governação mais consentânea com as exigências – e oportunidades – do mundo contemporâneo. A situação portuguesa está completamente bloqueada. Que fazer? Nada. Continuar a empobrecer, enquanto esperamos resignadamente que a Europa se condoa... ou que os partidos se desagreguem e o regime chegue ao fim. Veremos o que então sobra de Portugal.





terça-feira, 1 de julho de 2014


Conúbio entre poder e direito.

A disputa entre Lotário II e Nicolau I
sobre o matrimónio.

Uma casuística tirada da história. (5)



Cardeal Walter Brandmüller


5. CONCLUSÃO

Na conclusão a partir da argumentação apenas exposta, consenti que responda a uma possível objecção que algum ou outro possa levantar e que corresponde ao esquema interpretativo de uma «história dos vencedores», mais próxima do pensamento histórico marxista. Com isto quer-se dizer que o desenvolvimento efectivo da doutrina, do sacramento e da constituição da Igreja não deveria desenvolver-se de forma necessária, ou seja, por força das coisas, como de facto se desenvolveu. Que outras perspectivas, talvez opostas, não tenham conseguido impor-se, isso seria apenas o resultado das conjunturas históricas, ou seja, de relações de poder, casuais. Este modo de considerar os acontecimentos da história da Igreja, e os resultados dos mesmos, consentiria tomar estes últimos como produtos meramente casuais da relatividade que lhes seria própria. Por outras palavras, poderiam ser mudados em qualquer momento e enveredar por outras vias.

Isto no entanto não é possível se na base se colocar a compreensão autenticamente católica da Igreja, como vem expressa na constituição Lumen Gentium do Concílio Vaticano II.

Para tal fim é necessário – como já foi observado – que a Igreja possa estar certa da ajuda constante do Espírito Santo, que é o seu princípio vital mais íntimo, a garantir e a operar a sua identidade não obstante todas as mudanças históricas.

Assim portanto, o desenvolvimento efectivo do dogma, do sacramento e da hierarquia do direito divino não são produtos casuais da história, mas são guiados e possibilitados pelo Espírito de Deus. Por isto tal desenvolvimento é irreversível e aberto só na direcção de uma compreensão mais completa. A tradição, em tal sentido tem, portanto, carácter normativo.

No caso examinado, isto significa que a respeito dos dogmas da unidade, da sacramentalidade e da indissolubilidade, radicados no matrimónio entre dois baptizados, não há volta atrás a não ser que se os considere – coisa que é de rejeitar – como um erro do qual seria preciso emendar-se.

O modo de agir de Nicolau I na disputa sobre o novo matrimónio de Lotário II, tão consciente dos princípios quanto inflexível e impávido, constitui uma etapa importante no caminho para a afirmação do ensinamento sobre o matrimónio no âmbito cultural germânico.

O facto que o Papa, como também os seus vários sucessores, em ocasiões análogas, se tenha demonstrado advogado da dignidade das pessoas e da liberdade dos mais desprotegidos – na maior parte dos casos eram mulheres – fez merecer a Nicolau I o respeito da historiografia, a coroa da santidade e o título de «Magno».





Conúbio entre poder e direito.

A disputa entre Lotário II e Nicolau I
sobre o matrimónio.

Uma casuística tirada da história. (4)


Cardeal Walter Brandmüller


4. APRENDER COM A HISTÓRIA

Se a história, e também a história da Igreja, não se contenta com o facto de aparecer como uma pequena recolha de episódios mais ou menos edificantes – e de tanto em vez também divertidos ou escandalosos – mas pelos seus resultados pretende ter relevância teológica, então é necessário perguntar-se acerca das conclusões teológicas emergentes do debate sobre o matrimónio de Lotário II acabada de narrar. No entanto não será possível desenvolver aqui um aspecto dos acontecimentos citados, ou seja a pergunta sobre o tipo e sobre a extensão do exercício da jurisdição papal por parte de Nicolau I. Limitar-nos-emos portanto às afirmações que possam ser feitas a respeito da compreensão acerca da indissolubilidade do matrimónio.

Ernst Daßmann escreve a propósito da atitude da Igreja cristã dos primórdios sobre este ponto: «Uma consequência que dificilmente pode ser desvalorizada na configuração do matrimónio e na vida familiar cristã deu-se através da proibição absoluta do adultério que valia em igual medida para homem e mulher, como também o direito à vida da criança, também esse reconhecido sem limitações. Por princípio era rejeitado também o divórcio; todavia a este respeito o juízo variava sobre o modo em que devia comportar-se a parte cristã no caso de adultério do homem ou da mulher e se ao cônjuge traído ou abandonado deveria ser permitido um novo matrimónio». Como já se disse, no entanto, o problema colocava-se só no caso de matrimónio entre baptizados e não baptizados. Esta norma autenticamente cristã não chocava apenas com a realidade da vida na sociedade antiga mediterrânica greco-romana. Uma situação análoga resultava igualmente quando a compreensão sacramental, e portanto a exigência de unidade e de indissolubilidade do matrimónio cristão, incindível daquela, era colocada em confronto com as estruturas sociais pré-cristãs do âmbito cultural germânico-céltico.

Teve assim início também um processo no curso do qual o conceito cristão de matrimónio procurou impor-se sobre as formas e sobre as normas matrimoniais pré-cristãs transmitidas pelas populações entretanto convertidas à fé em Cristo. Considerando a posição social das pessoas envolvidas no caso tomado em exame e as dimensões do conflito, que abraçava quer a política quer a Igreja, não é exagerado considerar o debate acerca do matrimónio do rei franco uma pedra milenar no longo processo de afirmação das normas matrimoniais cristãs.

Ao ensinar as diversas etapas do processo, notamos que sob o aspecto fundamental, o teológico, não havia dúvidas. Mas eram grandes as incertezas acerca da aplicação do ensinamento cristão acerca do matrimónio a casos concretos, que continuavam a apresentar-se numa situação social caracterizada pela tradição pagã.

De facto, a este propósito, encontramos, bispos e sínodos que acreditavam ter o poder de dissolver matrimónios e de consentir outros novos, exactamente como aconteceu no facto apenas descrito. Esta observação poderia levar-nos a recordar uma fórmula forjada pela canonística iluminista: «Olim non era sic», antigamente não era assim.

Aplicado ao presente: «Antigamente existia uma autorização para voltar a casar depois do divórcio». Haverá, portanto, um motivo que impede, na situação actual e perante as dificuldades pastorais do presente, determinar uma posição já tomada no passado é admitir uma práxis «mais humana» – como hoje se diria – do divórcio e de novo matrimónio?

Coloca-se deste modo uma pergunta de grande peso teológico. A sua importância emerge quando lembramos que já no âmbito da teologia ecuménica se argumentou de forma análoga. Não se poderia – esta é a questão naquele âmbito – convencer mais facilmente a Igreja ortodoxa à reunificação se se voltasse ao estado de relação entre Oriente e Ocidente antes das excomunhões de 1054?

Já em meados do século XVII, além disso, foi chamado em causa – mais precisamente pelos teólogos da assim chamada ortodoxia luterana e da escola de Helmstädt, mais próxima de Melancton – o modelo de reunificação do «consensus quinquesaecularis», ou seja, do retorno à situação da doutrina da fé é da igreja vigente nos primeiros cinco séculos a respeito da qual hoje não existiriam controvérsias.

Ideias verdadeiramente fascinantes! Mas será que oferecem uma chave para resolver o problema? Só em aparência. Não foi por acaso que a história as ignorou e a sua legitimação teológica se apoia sobre pés de barro. A tradição, no sentido técnico e teológico do termo não é uma feira de antiguidades onde se possa escolher e adquirir determinados objectos ambicionados!

A «traditio –paradosis» é, em vez disso, um processo dinâmico de desenvolvimento orgânico conforme – seja-me permitida a comparação – ao código genético ínsito na Igreja. Trata-se no entanto de um processo que não encontra correspondência adequada na história profana das formas sociais humanas, nos estados, nas dinastias e assim por diante. Exactamente como a Igreja é uma sociedade «sui generis» não objecto de analogias, também as suas escolhas de vida não são comparáveis, «sic et simpliciter», com as das comunidades puramente humanas e mundanas.

Aqui são decisivos os dados da Revelação divina. Desta resulta a indefectibilidade da Igreja, ou seja o facto de que a Igreja de Cristo, no que respeita ao seu património de fé, os seus sacramentos e a sua estrutura hierárquica fundada sobre a instituição divina, não pode ter um, desenvolvimento que coloque em perigo a sua própria identidade.

Sempre que se tome a sério na fé a acção do Espírito Santo, que habita na Igreja e que, segundo a promessa do Divino Mestre, a guiará até à verdade toda inteira, aparece como óbvio que o princípio «olim non erat sic» não pertence à estrutura da Igreja e, portanto, não pode ser determinante em relação a ela.

Mas se os sínodos acima mencionados, então, efectivamente autorizaram Lotário II a voltar a casar, não seria também aquela decisão guiada pelo Espírito Santo? Não seria talvez uma expressão da «traditio»?

A isso responde a pergunta sobre a forma concreta e a competência daqueles sínodos. É verdade que eles não tomaram decisões doutrinais, nem emanaram leis, e todavia, pretenderam julgar, e isto não em matéria puramente jurídica, mas sim sacramental. No caso examinado aqueles sínodos de facto não eram livres, e dada a pressão exercida pelo rei, deviam indubiamente ser considerados de parte ou até mesmo corruptos. A sua dependência de Lotário II levou a uma condescendência tal acerca dos desejos do rei, que levou os bispos até a violar o direito e a corromper os legados pontifícios.

Tendo em conta as circunstâncias e outras irregularidades, era evidente que aqueles sínodos tinham feito tudo menos administrar a justiça. Exactamente deste género de experiências é que derivou a norma de direito canónico que retira aos tribunais eclesiásticos territoriais a competência para as causas respeitantes aos detentores de poder máximo do Estado e indica como único foro competente o tribunal do Papa (Código de Direito Canónico, cânone 1405). No caso ilustrado, acrescenta-se como ulterior critério decisivo a valoração negativa, sem cumplicidades, do Papa sobre tais sínodos, sobre o seu modo de proceder e sobre o seu juízo final. Não se pode portanto pensar sequer remotamente que semelhantes assembleias possam ser um lugar onde colher a tradição autêntica e vinculativa da Igreja.

É certo que não só os concílios gerais mas também os sínodos particulares podem formular a «traditio» de forma vinculante. No entanto podem fazê-lo apenas na medida em que correspondam eles mesmos às exigências quer formais quer de conteúdo da tradição autêntica. Isto, no entanto, – é importante sublinhar – não era o caso no que respeita às assembleias de bispos aqui examinadas.






Conúbio entre poder e direito.

A disputa entre Lotário II e Nicolau I
sobre o matrimónio.

Uma casuística tirada da história. (3)


Cardeal Walter Brandmüller


3. O CENÁRIO JURÍDICO

Após esta descrição sintética dos acontecimentos será examinado o cenário no qual se desenvolveram.

Para fazê-lo é necessário primeiro observar que o matrimónio entre Lotário II e Teutberga tinha sido contraído por motivos políticos. O rei ligava-se de tal modo com a casa nobiliar que, na região dos vales alpinos, controlava importantes pontos estratégicos. Podia assim esperar melhorar a própria posição de partida com uma intervenção no território dos burgúndios. O irmão de Teutberga era, além disso, abade leigo no convento de S. Maurice d'Agaune, situado numa posição estratégica. A outra esperança nutrida por Lotário, ou seja, a de expulsar o irmão menor Carlos de Borgonha para subir ao trono, foi no entanto frustrada quando o Papa Bento III conseguiu resolver de modo pacífico a luta entre os dois irmãos no ano a seguir ao matrimónio de Lotário com Teutberga.

Assim, a razão política do matrimónio tinha-se tornado inconsciente. A isto juntavam-se a antipatia pessoal e talvez ainda um conflito profundamente radicado, com a família de Teutberga. Lotário voltou de novo para junto de Gualdrada, com a qual tinha vivido anteriormente em relação de Friedelehe, da qual tinham nascido um filho de nome Hugo e diversas filhas.

Coloca-se por isso a questão sobre a qualidade jurídica, e portanto, também sacramental, desta primeira união. Se se tratasse de um matrimónio juridicamente válido e portanto sacramental, o matrimónio com Teutberga teria sido impossível logo à partida. Isso, no entanto, pode ser excluído, uma vez que Lotário tem um contrato válido de matrimónio com Teutberga.

O que era então a Friedelehe de Lotario com Gualdrada?

A literatura da história do direito não oferece um quadro claro e inequívoco. Pode no entanto estabelecer-se o quanto segue: a Friedelehe – de friedila, ou seja amante, consorte – realizava-se através do consenso entre homem e mulher, o Brautlauf (termo com o qual se definiam os usos esponsais), e o concúbito. Com esta forma de comunhão o homem não obtinha a Munt, ou seja a potestade conjugal sobre a mulher. Não era pago um Muntschatz; era portanto um matrimónio sem dote. Todavia, a mulher recebia a Morgengabe, um presente precioso oferecido na manhã seguinte. Em particular a Friedelehe era escolhida – falamos aqui no âmbito jurídico germânico – quando havia disparidade de classes, quando o homem passava a fazer parte da família da mulher através do matrimónio ou em caso de rapto. Este tipo de matrimónio existia também como matrimónio secundário. É portanto neste tipo de relação que conviviam Lotário e Gualdrada.

Deste se distinguia substancialmente a assim chamada Muntehe, fundada sobre um contrato entre duas famílias implicadas, ou seja entre o esposo e o pai ou o tutor da esposa. Em tal caso, o esposo recebia a Munt da mulher, ou seja a tutela, e como contrapartida pagava o Muntschatz, isto é, o dote, também chamado Wittum, (contra-dote). A conclusão desse contrato era seguida por uma série de actos jurídicos: a entrega solene da mulher, o acompanhamento dela até à casa do esposo (o chamado Brautlauf) e o concúbito. Através deste tipo de matrimónio, a mulher assumia a posição de patroa da casa e na manhã a seguir à primeira noite de núpcias recebia a Morgengabe.

Era isto que estava em vigor no âmbito jurídico franco-germânico. E era precisamente esta a situação perante a qual se encontrou a Igreja no seu esforço por fazer valer a exigência de Cristo da unidade e indissolubilidade do matrimónio. A luta da Igreja por uma civilização e por uma cristianização do matrimónio não deveria recomeçar somente junto dos Germanos. Foi uma luta que – por motivos que aqui nãe estudamos – começou relativamente tarde. Só Bonifácio conseguiu, com o apoio dos príncipes francos Carlos Magno e Pepino, fazer com que a lei de Deus adquirisse valor universal. Os numerosos sínodos para a reforma, convocados por Bonifácio, proporcionaram um foro adequado a tal fim. A partir daquele momento se impôs o princípio formulado por Bento o Levita: «Nullum sine dote fiat coniugium nec sine publicis nuptiis quisquam nubere praesumat» (nenhum matrimónio deverá ser contraído sem dote, e ninguém deve ousar casar sem núpcias públicas».

Embora se possa afirmar que a Muntehe, o matrimónio contratual, finalmente prevaleceu, ficam muitas dúvidas sobre se com isto a Friedelehe foi abandonada. Paul Mikat vê nisto uma desiderato urgente da investigação e Werner Ogris, no manual de História do Direito Alemão (Handwörterbuch zur deutschen Rechtsgeschichte), não obstante toda a incerteza sobre os pormenores, sustenta que «a existência, no âmbito germânico, de um matrimónio morganático sem dote e sem potestade, dificilmente pode ser fundamentadamente posta em dúvida».

Entretanto, exactamente por influência da Igreja, o desenvolvimento foi na direcção do facto de que «a Friedelehe se distinguisse cada vez mais da Muntehe, e acabou necessariamente por aproximar-se da união sexual não conjugal». Indicativo disto mesmo é a utilização indistinta da palavra concubina quer para a mulher na Friedelehe quer para a verdadeira concubina.

Dadas as circunstâncias era urgentemente necessário verificar, no caso específico de Lotário, se antes de ter contraído matrimónio com Teutberga ele tinha contraído um matrimónio secundum legem et ritum (segundo a lei e o rito) com Gualdrada, como Nicolau pediu que fosse feito pelos seus legados. Ele insistiu de modo particular sobre a dotação e sobre a consagração do matrimónio: «Informa-nos o mais depressa possível se o rei desposou Gualdrada com a apresentação e entrega do dom nupcial perante testemunhas, segundo o direito e o costuma, e se Gualdrada lhe foi dada em matrimónio publicamente».

Por outro lado, não dispomos de nenhuma fonte a testemunhar que a Igreja tivesse alguma vez reconhecido uma Friedelehe como matrimónio. E isto encontra confirmação no facto de que não foi levantada nenhuma objecção por parte da Igreja quando Lotário, depois de se ter separado de Gualdrada, contraíu matrimónio com Teutberga.

Paul Mikat conclui desta forma a sua profunda análise Dotierte Ehe – rechte Ehe de 1984: «O desenvolvimento do direito matrimonial em época franco-merovíngia e também nos séculos seguintes mostra quanto fosse difícil para a Igreja fazer valer entre os germanos a sua concepção de matrimónio e o seu direito matrimonial. No processo de afirmação, uma função particular coube ao direito sobre a celebração do matrimónio que, no entanto a Igreja enfrentou só tardiamente com hesitação. Não dispunha de um modelo para a celebração do matrimónio eclesial e podia aceitar o direito vigente sempre que este representasse uma forma de matrimónio que a Igreja pudesse reconhecer plenamente do ponto de vista teológico, ou seja, quando a forma do matrimónio correspondia aos princípios da indissolubilidade e da comunidade de vida monogâmica. Os desenvolvimentos que se deram desde meados do século VIII confirmam claramente o carácter funcional que a Igreja atribuía ao direito sobre a celebração do matrimónio; eles demonstram que a influência da Igreja sobre o direito relativo à celebração do matrimónio era intimamente ligada ao seu esforço por fazer valer a sua compreensão do matrimónio».

Partindo destes pressupostos, não se pode considerar senão como coerente o facto de Nicolau I ter definido como grave impiedade a tentativa de contrair uma Muntehe com Gualdrada. Fez isto nada menos do que para satisfazer as exigências da justiça e por isto ordenou uma atenta investigação através do já mencionado sínodo de Metz e dos seus legados, Radoaldo e João. O seu encargo era, antes de mais, o de descobrir se a afirmação de Lotário de que tinha recebido Gualdrada como mulher da parte do seu pai era correcta. Tal seria o caso se Lotário tivesse tomado Gualdrada como mulher «depois de ter havido a entrega do dom nupcial perante duas testemunhas, segundo o direito e o costume». Se tivesse sido este o caso, surgia a pergunta de que porque é que depois a tinha repudiado e tinha casado com Teutberga. Se no entanto, Lotário afirmava ter casado com Teutberga por medo, então era preciso perguntar-se como é que um rei tão poderoso tinha chegado a transgredir o mandamento de Deus por medo de um homem, e cair tão em baixo.

Se, em vez disso fosse claro que Gualdrada não era de facto sua legítima consorte, porque não era casada com Lotário de acordo com os usos e com a bênção de um sacerdote, os legados teríam devido fazer compreender ao rei que devia retomar Teutberga, se esta estivesse sem culpa. Ele não deveria seguir a voz da carne, mas sim obedecer ao mandamento de Deus. Deveria isso sim temer apodrecer na lama da luxúria tendo seguido o próprio querer e lembrar que teria que prestar contas diante do trono do Juiz. O Papa, além disso, transmitiu aos legados que Teutberga já se tinha dirigido três vezes à Sé Apostólica, lamentando-se de ter sido afastada injustamente e declarando que tinha sido coagida a uma confissão falsa. Se Teutberga acolhesse o seu convite para apresentar-se ao sínodo, os legados deveriam examinar em consciência a sua causa. Se ela confirmasse a acusação de ter sido coagida à referida confissão, isto é, de ter sido condenada por juízes injustos, esses então deveriam decidir segundo a equidade e a justiça, para que ela não viesse a ser esmagada pelo peso da injustiça.

Em tudo isto Nicolau – e este é um aspecto interessante – não ignora de forma alguma o destino de Gualdrada. Acusa Lotário, de facto, de se ter comportado também para com ela de forma celerada. Em seguida, muitos bispos receberam cartas da parte do Papa, em que eram convidados a exercer a sua influência sobre Lotário para o fazer voltar ao caminho recto. A este último escreveu em finais de 863: «Cedeste tanto aos impulsos do teu corpo, que soltaste as rédeas da tua vontade. Assim tu próprio, que estás colocado como guia do teu povo te tornaste para muitos causa de ruína!». Uma vez que estes e outros avisos foram vãos, quer Lotário quer Gualdrada foram excomungados; esta última em 13 de Junho de 866. No ulterior curso das questões que não puderam ser resolvidas durante a vida de Lotário II, a posição do Papa não mudou sobre nenhum ponto.

Se examinarmos na sua globalidade a tomada de posição de Nicolau I e de Incmaro de Reims nesta causa, torna-se evidente que um e outro seguem a corrente da tradição jurídica canónica e da fé na unidade e na indissolubilidade do matrimónio sacramental.

Emerge ainda um outro dado: na medida em que a Igreja conseguiu que esta concepção do matrimónio se afirmasse, o matrimónio perdeu toda a função utilitarista.

Embora nunca tenha sido possível evitar que fossem celebrados matrimónios (simulados) ao serviço de interesses políticos, dinásticos ou até financeiros, naqueles lugares onde a dignidade da pessoa e os direitos pessoais das mulheres eram sacrificados, enquanto que os homens se sentiam impelidos a romper o matrimónio com uma mulher não amada, seja Incmaro de Reims, seja sobretudo Nicolau I propõem a dignidade e os direitos de uma mulher acima da arbitrariedade de um poderoso. Incmaro, fazendo referência ao direito canónico, sublinha expressamente que mesmo a esterilidade da esposa não pode ser um motivo para dissolver um matrimónio válido, e menos ainda para contrair um novo matrimónio.

Por sua vez, Nicolau, que não ignorava de forma alguma as culpas de Gualdrada, considera-a, no entanto uma vítima da paixão de Lotário. Através das explicações muito eficazes contidas numa carta de 30 de Outubro de 867 a Ludovico, tio de Lotário, o Papa dá um ulterior testemunho da sua visão personalista do matrimónio, quase anacrónica para aquela época. Pede a este tio que exerça a sua própria influência sobre Lotário, para que não só acolha Teutberga novamente como mulher e lhe restitua os seus direitos, o que já tinha sido alcançado graças ao legado Arsénio, mas que a trate também verdadeiramente como sua mulher. De que serve, pergunta Nicolau, se Lotário com os pés do próprio corpo deixa de se deslocar para Gualdrada enquanto que com os passos do espírito corre ao seu encontro? E de que serve se, separado externamente de Gualdrada, continua intimamente a estar fundido com ela? Enfim, também Teutberga não pode estar satisfeita com a proximidade física do marido se não existe proximidade espiritual, uma vez que Gualdrada continua a exercer o seu poder como se fosse ela a rainha!

Perante afirmações tão claras e nítidas é necessário precaver-se de um clichè que define a compreensão do matrimónio de amor fundamentado sobre uma ligação espiritual só como uma conquista da idade moderna. É precisamente esta tomada de posição de Nicolau I sobre o matrimónio de Lotário que mostra o quanto o conceito cristão de matrimónio se distinguia da visão – e da prática – germânica pré-cristã. Mesmo sobre a questão «mulher e Igreja», agora tanto na moda, desce uma luz até agora percebida com dificuldade.






Conúbio entre poder e direito.

A disputa entre Lotário II e Nicolau I
sobre o matrimónio.

Uma casuística tirada da história. (2)


Cardeal Walter Brandmüller


2. OS ACONTECIMENTOS

É necessário portanto perguntar antes de mais o que tinha acontecido. Antes de assumir o poder, no ano de 855, Lotário II tinha vivido numa relação dita Friedelehe – o termo será explicado de seguida – com uma certa Gualdrada (ou Waldrada), proveniente de uma família aristocrática ignota. Todavia, uma vez tornado rei, contraíu matrimónio formal com a irmã do margravio Uberto de Valles, que detinha o controlo sobre uma região da actual Suiça e era também abade titular de S. Maurice d'Agaune. Esta rainha chamava-se Teutberga (ou Teoberga). Dois anos depois, Lotário separou-se dela e voltou para Gualdrada, da qual provavelmente teve um filho de nome Ugo. Isto suscitou a oposição dos ambiente aristocráticos. Para demonstrar a sua inocência, Teutberga não hesitou em colocar-se sob o juízo de Deus como era costume naquela época.

No seu caso, a ordalia consistiria em extrair um objecto de uma panela cheia de água a ferver (o chamado Kesselfang). Uma vez que as queimaduras da pessoa que em sua vez se submeteu à prova curaram sem qualquer problema – este foi o sinal da sua inocência – ela saíu inocente do juízo divino. Lotário, portanto, pressionado pela sua aristocracia, acolheu novamente Teutberga mas sem prosseguir a comunhão matrimonial, e manteve-a sob rigorosa custódia de prisão. O processo tinha corrido perante um tribunal composto por nobres lotaríngios.

Lotário não aceitou de forma alguma este resultado, contestou a ordalia e arrastou a questão até um sínodo, que se teve em Janeiro de 860 em Aquisgrana. Diante deste sínodo, Lotário afirmou com voz mesta que a mulher tinha a intenção de entrar para o convento, considerando-se indigna do matrimónio com ele. O motivo aduzido para esta decisão foi o de que o rei tinha vindo ao conhecimento do facto de que, antes do matrimónio, Teutberga tinha cometido incesto com o seu irmão Uberto. A própria mulher o tinha confessado aos bispos, os quais, portanto tinham proibido a Lotário de prosseguir em matrimónio.

Durante o sínodo que se realizou em Aquisgrana no seguinte mês de Fevereiro, com um número mais elevado de participantes, Teutberga repetiu a sua confissão, pelo qual foi condenada à penitência pública e mandada para um convento. Mas em tudo isto não foi expresso nenhum juízo acerca da própria validade do matrimónio. Que aquela confissão pudesse corresponder à realidade surge, de facto, como bastante dúbio. Mais depressa se deve presumir que foi feita sob forte pressão da parte de Lotário. Os contemporâneos, pelo menos, estavam convencidos disso mesmo.

Teutberga, entretanto, conseguiu fugir e alcançar o seu irmão Uberto, que se tinha dirigido a Carlos o Calvo no Reino dos Francos ocidentais, para pedir protecção e sustento.

A este ponto interveio Incmaro, figura dominante da Igreja Franca na segunda metade do século IX. Desde 845 arcebispo muito influente de Reims, graças à actividade legislativa e política e, sobretudo, à obra pastoral cheia de zelo, tinha alcançado um papel de guia no meio do episcopado franco. A ocasião para intervir nesta questão matrimonial de Lotário foi-lhe entregue pelos bispos lotaríngios e pelos nobres do Reino, apresentando-lhe uma série de perguntas a respeito, às quais Incmaro respondeu com o escrito De divortio Lotharii et Teutbergae. Esta preciosa obra, cuja edição crítica apareceu pela primeira vez em 1990, é endereçada ao rei da estirpe carolíngia, aos outros bispos e a todos os fiéis, e foi emanada em nome dos bispos sufragâneos da província eclesiástica de Reims. Nessa, o douto canonista explica, apoiando-se na Sagrada Escritura, nos seus exegetas – os Padres – o direito canónico e também civil. A substância das suas explicações é o conceito de que ninguém pode casar de novo, enquanto estiver em vida o seu legítimo consorte. Assim a disputa foi elevada a princípio. Incmaro pediu, portanto um processo contra Lotário por adultério e Teutberga apelou ao Papa.

Vendo-se desta forma em apertos, Lotário reuniu um novo sínodo em Aquisgrana, no final de Abril de 862, novamente constituído só por bispos do seu domínio. Estes consentiram permitir ao rei um novo vínculo matrimonial, uma vez que aquele que existia com Teutberga deveria ser considerado nulo por causa da já referida relação incestuosa. Para este efeito fizeram referência à proibição dos matrimónios incestuosos, sancionada no cânone 30 de Epaone em Borgonha (ca. 517). Obviamente de má fé porque Teutberga mesmo que tivesse tido uma relação incestuosa, certamente não a tinha tido com Lotário.

Parece que no interior do sínodo tivesse existido uma vã oposição contra este mais do que discutível procedimento. De facto, juntamente com este foi transmitida também uma perícia que levava a um juízo oposto. De todos os modos, no final de 862 Lotário casou oficialmente com Gualdrada e fez com que ela fosse coroada rainha.

Chegados a este ponto, intervém o Papa após os múltiplos pedidos de ajuda que Teutberga lhe tinha dirigido. Convocou um sínodo para se realizar em Metz em Junho de 863, sob a presidência de legados pontifícios, para o qual convidou expressamente sobretudo os bispos das francofonias ocidental e oriental. A sua intenção, no entanto, foi tornada vã, uma vez que participaram novamente os bispo lotaríngios. Todavia, as fontes que nos chegaram não permitem traçar um quadro claro dos acontecimentos. De qualquer modo, mais uma vez a decisão foi favorável a Lotário.

Com este resultado, os bispos lotaríngios Tilgaldo de Treveri e Guntero de Colónia deslocaram-se a Roma, certos de conseguir fazer valer, apresentando-se pessoalmente ao Papa, o seu ponto de vista, ou seja, o de Lotário. O facto de Nicolau os ter feito esperar três semanas sem os receber provavelmente desmoronou neles, em parte, a certeza da vitória. No entanto, o Papa convocou um sínodo ao qual Tilgaldo e Guntero foram chamados somente para receber a sua sentença de deposição com excomunhão. As decisões do sínodo de Metz, que Nicolau comparou ao do famigerado confronto de Éfeso, foram cassadas e os seus participantes igualmente destituídos, oferecendo-lhes a possibilidade de pedir a graça, uma vez que foram meros coniventes. Algumas das suas cartas de pedido de desculpa dirigidas a Nicolau I chegaram até nós.

Profundamente indignados, os arcebispos refugiaram-se junto do Imperador Ludovico II, que estava a residir em Benevento, conseguindo convencê-lo a passar para o lado de Lotário. Em Fevereiro de 864 entrou em Roma com o seu exército.

Privo de qualquer protecção militar, Nicolau I mandou fazer jejum e ordenou rogações para implorar a ajuda do Céu. Uma das procissões foi assaltada pelo exército de Ludovico enquanto se dirigia para São Pedro, os participantes foram maltratados, as cruzes foram despedaçadas e as insígnias religiosas rasgadas, mas sobretudo, uma relíquia da Cruz foi lançada na lama. Perante esta aberta violência, o Papa refugiou-se, em segredo, junto do túmulo de São Pedro onde passou dois dias e duas noites em oração, sem água nem alimento.

Entre os romanos cresceu visivelmente a indignação por tudo isto e quando a pessoa que tinha ultrajado a relíquia da Cruz morreu de improviso e o próprio Ludovico foi colhido pela febre, o Imperador foi lesto a mostrar-se conciliador. Graças à mediação da imperatriz Engelberga, realizou-se um colóquio olhos nos olhos entre o Papa e o Imperador, que a partir daquela altura abandonou os dois arcebispos que o tinham enredado na questão e aceitou o juízo do Papa sobre Lotário e o seu matrimónio. Tilgaldo e Guntero aos quais ordenou voltar à Alemanha sem lhes ter levantado a excomunhão, antes de partir para o norte redigiram uma carta de protesto contra Nicolau I, de cuja linguagem altiva emergia que o objectivo deles era criar uma Igreja Nacional independente de Roma. Guntero de Colónia encarregou o seu irmão clérigo Ilduíno de entregar a carta ao Papa ou no caso de este recusar, de a depor sobre a confessio de São Pedro.

E porque foi isto mesmo que aconteceu, Ilduíno, em conjunto com um grupo de homens armados, deslocou-se a São Pedro onde os clérigos da basílica procuraram impedir o seu intento. Desembainharam as espadas, feriram um que caiu por terra, lançaram o libelo sobre a confessio e fugiram da basílica, abrindo caminho à força de armas.

A permanência do Imperador em Roma foi acompanhada de assassinatos, incêndios, assaltos e outras semelhantes atrocidades. Escreve Gregorovius: «No entanto, tal tempestade não quebrou a força de Nicolau. Com a firmeza de um antigo romano, aquele espírito brioso e forte manteve-se de pé. Ameaçou com as flechas da excomunhão e estas foram temidas como verdadeiros raios fulminantes: os bispos da Lotaríngia enviaram as suas declarações penitentes ... o seu legado, com uma das mãos conduziu ao rei que se retraía diante da seta da excomunhão, à consorte repudiada e, com a outra, lhe afastou a amante». Assim a questão foi resolvida, não, de facto, de modo definitivo mas ao menos a princípio.






Conúbio entre poder e direito.

A disputa entre Lotário II e Nicolau I
sobre o matrimónio.

Uma casuística tirada da história. (1)



Cardeal Walter Brandmüller

(Tradução para português por P. António Figueira)


SUMÁRIO

1. Premissa.
2. Os acontecimentos.
3. O cenário jurídico.
4. Aprender com a História.
5. Conclusão.


1. PREMISSA

A queda do Império de Carlos Magno no Ocidente e o cisma em relação a Roma do Patriarca Fócio de Constantinopla caracterizam o contexto político-eclesial em que se insere a disputa que, entre 855 e 869, sacudiu o reino e a Igreja e levou até o Imperador Ludovico a invadir Roma com o seu exército.

Esta disputa sobre o matrimónio deixou um rasto tão profundo na consciência dos contemporâneos que, ainda hoje, sejam as fontes, sejam as investigações acerca daquele rei franco são inteiramente dominadas pelo seu confronto com o influente arcebispo Incmaro de Reims e, sobretudo, com Nicolau I.

Na pessoa daquele Papa, o rei dos Francos encontrou um homem de extraordinária grandeza espiritual e de carácter. Até o próprio expoente da historiografia pontifícia nacional-liberal protestante Ferdinand Gregorovius escreveu a tal respeito: «Esta tragédia – a desgraça de uma rainha e a triunfante insolência de uma concubina real – agitou países e povos, Estado e Igreja, e deu ao Papa a ocasião de ser elevado a uma altura, em que foi envolvido por um esplendor maior do que aquele que lhe poderiam ter fornecido os dogmas teológicos. A atitude de Nicolau I perante este escândalo real foi magna e firme, a autoridade sacerdotal aparecia nele como um poder moral que salvava a virtude e punia os pecados... em um tempo bárbaro ...».





segunda-feira, 30 de junho de 2014

Um plano para toda a gente poder comprar
livros de Herberto Helder


Rui Ramos

 Há a possibilidade de nacionalizar a obra de Herberto Helder. Depois desse 11 de Março poético cada nova publicação sua passaria a ter as tiragens e as reedições decididas pelo Tribunal Constitucional.

Na segunda-feira passada, como outros aficionados, esperei o novo livro de Herberto Helder. A Morte Sem Mestre (Porto Editora), com uma capa a imitar papel de embrulho, trazia um CD onde o autor lê alguns dos seus poemas. Reconheci a voz de gravações antigas, agora carregada pela idade.

Eu queria dizer que este é o maior livro publicado em português em 2014. Mas tenho de falar de outra coisa, porque a pátria tem agora um problema com Herberto Helder. Explico: A Morte Sem Mestre, como todas ou quase todas as colecções de versos do autor, terá apenas uma única edição, com tiragem limitada. É essa a vontade de Herberto Helder. Por isso, o livro quase que já saiu esgotado.

Ora, a pátria, que durante anos ignorou o «poeta obscuro», sentiu agora, mal soube que não o pode adquirir quando lhe apetecer, um direito quase constitucional a dispor de livros de Herberto Helder.

O jornalismo progressista deu logo o devido eco à indignação. Noutros tempos, poderíamos esperar alguma simpatia por um escritor que recusa «vender», tal como recusa prémios ou entrevistas. Desta vez, porém, ninguém se comoveu. O progressismo nacional quer «comprar», e portanto exige que Herberto Helder «venda». E como não vende, ei-lo acusado de colaborar numa austeridade poética que prejudica o povo e só beneficia os coleccionadores. Uma espécie de Alexandre Soares dos Santos da poesia.

Antes que Vasco Lourenço explique que não foi para isto que fez o 25 de Abril, gostaria de expor à nação um plano para tornar efectivo o direito de cada cidadão a um exemplar dos livros de Herberto Helder. E descansem, não passa pela instituição burguesa da encomenda, nem pela acção fascista de ir cedo à livraria.

A muita gente terá ocorrido a possibilidade de nacionalizar a obra de Herberto Helder. Depois desse 11 de Março poético, cada nova publicação sua passaria a ter as tiragens e as reedições decididas pelo Tribunal Constitucional. É boa ideia, mas tem um senão: Herberto Helder recusar-se-ia provavelmente a publicar mais livros. Seria então necessário passar a uma fase superior de controle, com inspeções periódicas da ASAE às gavetas do poeta, de modo a restituir à nação qualquer verso que ele nos procurasse sonegar. Ora bem, e se, nessas circunstâncias, Herberto Helder deixasse de escrever? Restava-nos a coacção. Acontece porém que, devido à traição do 25 de Novembro, ainda não estamos na Coreia do Norte.

Por isso, vale a pena considerar este plano alternativo, e que resumo desde já: a substituição de Herberto Helder por Manuel Alegre. Têm quase a mesma idade, e, a crer nas fotografias conhecidas de Herberto Helder, a mesma barba poética. Bastaria, portanto, decretar que, a partir de agora, Manuel Alegre passa a publicar com o nome de Herberto Helder. Os livros deste novo Herberto Helder teriam, claro, tantas reedições quantas as necessárias para satisfazer o legítimo direito de cada português de adquirir um livro de Herberto Helder. Este plano não só erradicaria o racionamento dos livros de Herberto Helder, mas daria à sua poesia o cunho apropriados para ser recitada em saraus ou manifestações progressistas. Dir-me-ão: e se Manuel Alegre não aceitar ser Herberto Helder? Bem, eu, se fosse Manuel Alegre, aceitaria.






Ainda o 10 de Junho


Comentários breves a um discurso impróprio


Luís Lemos

No 10 de Junho, nas comemorações junto ao monumento aos combatentes do Ultramar, contrastando com o excelente discurso do tenente-general Sousa Rodrigues (texto já reproduzido em http://responderachamada.blogspot.pt/2014/06/palavras-do-tenente-general-sousa.html ), foi a intervenção de Henrique Leitão, professor universitário da Faculdade de Ciências de Lisboa. Assistimos ao pior discurso que já alguma vez se ouviu nesta circunstância. Para termos uma ideia, transcrevemos algumas partes com as nossas anotações.

...
Henrique Leitão num oceano de sabedoria.

«Ao começar estas breves palavras vale sempre a pena relembrar algo que é para todos nós uma evidência: não viemos aqui para celebrar nem uma ideologia nem uma política».

(Que quererá Henrique Leitão dizer? Que a defesa do Ocidente e dos seus valores, que Portugal protagonizou no Ultramar, não assenta em nenhuma ideologia nem era política (e, nesta hipótese, tratar-se-á de ignorância filosófica e geo-estratégica de Henrique Leitão)? Ou, pior ainda, que Henrique Leitão se quer demarcar da ideologia e da defesa militar dos valores do Ocidente (e tratar-se-á de «progressismo» politicamente correcto)?

Então, se não se trata de ideologia nem de política, será que os traidores abrilistas que entregaram de bandeja o Ultramar à influência soviética também poderiam aqui estar a comemorar o 10 de Junho?)

«Não viemos nem para comemorar vitórias nem para lamentar derrotas».

(Viemos aqui para comer umas febras e beber uns copos?)

«Não viemos para julgar.»

(Afinal, para que servirão a história e as comemorações senão para lembrar e valorizar as  políticas correctas, os valores correctos e os actos de patriotismo e condenar os erros e as traições, proporcionando assim ensinamentos e bons exemplos para o futuro? Parece estar na moda «não julgar»... Mas, como se verá , afinal ele, como todos, já vai julgar... mal!)

«Também não viemos apenas para relembrar o passado, como algo frio e distante que se examina com interesse vago ou apenas com saudade.»

(Passado frio e distante? Interesse vago? Apenas com saudade? Sem ser fonte de lições? Pois, já tínhamos percebido para que serve a reflexão histórica!)

«Aprendi convosco que os verdadeiros soldados lutam não porque odeiam o que têm diante» (...)

(Para o cientista politicamente correcto da Faculdade de Ciências de Lisboa, o que os soldados portugueses teriam diante de si – o inimigo soviético na forma de guerrilha – não deveria ser odiado. Deveria ser quê? Tolerado? Amado? Observado com frieza? Deveria o soldado português puxar o gatilho, matar? Talvez, mas com amor... A guerra que Portugal travou em África por si próprio, pelo Ocidente e pela Civilização deveria ser uma espécie de guerra do Solnado?... Olhe, da parte do inimigo não era assim! Claro que para todas estas interrogações há uma resposta moralmente certa. Mas não é a resposta implícita na consideração beata de Henrique Leitão.)

...
Coisas simples que Henrique Leitão devia estudar.

«A história do nosso país enche de surpresa e admiração a quem a estuda: Uma nação pequena, de escassa população e recursos limitados, veio a desempenhar um papel singular na história da Europa e do Mundo. Não foi uma história perfeita de gente irrepreensível» (...)

(Que quer o cientista dizer com isto? Que os Portugueses se comportaram mal com o inimigo? Que trataram mal o inimigo em armas? Que Portugal cometeu erros de política ultramarina?... Conhecemos bem, da parte dos opinadores bem comportadinhos, politicamente correctos, as alternativas de capitulação perante o inimigo soviético.

E afinal, pasme-se, quem disse «Não viemos para julgar» já está a julgar o comportamento dos Portugueses... à maneira dele...)

...

«Os historiadores discutem há décadas como explicar estes factos surpreendentes [os Descobrimentos]. Razões económicas, políticas, sociais, religiosas têm sido avançadas como explicação, e todas elas são certamente necessárias.»

(E eis que ele vai descobrir-nos as verdadeiras razões!)

«Mas talvez a resposta esteja em olharmos para nós próprios: Arrojados, às vezes imprudentes, sempre prontos para partir, voluntariosos e um pouco desorganizados, fascinados com o novo, com o diferente, sonhadores, assim foram portugueses de todos os tempos.»

(Isto é, Henrique Leitão, no seu discurso, cita o cientista dos Descobrimentos Pedro Nunes – poderia até citar outros cientistas anteriores, como, por exemplo, os da Escola de Sagres e Abraão Zacuto. Mas depois vem explicar o êxito dos Descobrimentos pelo «voluntarismo», pela «imprudência», pela «desorganização» dos Portugueses... Os Portugueses, uma espécie de povo fandango, de marinheiros fandangos – gente não irrepreensível, como disse.

Então o cientista ignora que por detrás da grande empresa dos Descobrimentos estava uma verdadeira elite, a Ordem de Cristo, exemplo de valores, de organização, de planificação, de visão estratégica? Mas que grande lição de história e de história da ciência!).



Em resumo, Henrique Leitão ofereceu-nos um discurso pretensamente cheio de originalidades poéticas mas caindo na ideologia primária da não-ideologia, na política primária da não-política, no relativismo moral ou amoralismo do não julgar e na desconstrução da grandiosa epopeia dos Descobrimentos. Não, obrigado.

Curiosamente, Henrique Leitão é co-autor de um artigo, com o professor americano Walter Alvarez, defendendo precisamente o contrário sobre o papel da ciência nos descobrimentos. Nesse artigo, os autores avançam mesmo a hipótese de a ciência moderna ter nascido em  Portugal, com os Descobrimentos, «e não com Copérnico ou Galileu, como geralmente se aceita» (Segundo Alvarez em entrevista ao Público, em 22.5.2014).

Não possuindo elementos para irmos tão longe, é-nos no entanto legítimo perguntar: – Então, em que ficamos? Os Descobrimentos foram obra de organização e ciência ou de voluntarismo, desorganização e imprudência?

Ou seja, nos fóruns académicos, a propósito dos Descobrimentos, Henrique Leitão fala de ciência. Como grande especialista, que sabe da poda, o que lhe proporciona cachet. E depois, neste acto solene, prefere destacar a vulgaridade dos Portugueses.

Com toda esta narrativa terá pretendido demarcar-se da reaccionarada?

Erro de casting da Comissão Executiva do evento. As aparências iludem e errar é humano. Para o próximo ano será certamente melhor.